Artigo escrito em português/Portugal.
O protocolo familiar é uma espécie de “constituição” da empresa familiar e da família proprietária, é uma ferramenta que ajuda a prevenir e enfrentar os principais desafios destas sociedades, principalmente o da passagem de testemunho.
As empresas familiares, como base de uma economia de mercado e entidades com grande capacidade de resiliência, vão desempenhar um papel relevante para a Europa ultrapassar a monumental crise. Contudo, as suas reconhecidas especificidades fazem transparecer alguns desafios que, de forma recorrente, têm de enfrentar. Tudo o que puder ser dinamizado para auxiliar a enfrentar e ultrapassar esses obstáculos também contribuirá para o desenvolvimento do país e um futuro europeu bem mais promissor.
Estimando-se que criam entre 70% a 90% do PIB, ou representam mais de 60% das empresas na Europa, o que caracteriza estas entidades, das quais não existem estatísticas precisas? O último dado referido é já resultado da importância que a União Europeia está a atribuir a estas empresas, pois tem origem no estudo que teve seu apoio e foi desenvolvido por um grupo de especialistas na área, representativos de todos os seus Estados-membros, para analisar estas entidades no espaço europeu. Este trabalho, que identificou mais de 90 definições de empresa familiar, com variantes dentro do mesmo país, adotou uma posição consensual para a Europa ao definir que uma empresa, qualquer que seja a sua dimensão, é familiar se:
- A maioria dos direitos de votos se encontrarem na posse da (s) pessoa (s) singular (es) que estabeleceu (eram) a empresa, na posse da (s) pessoa (s) singular (es) que tive (erem) adquirido o capital social da empresa ou na posse dos seus cônjuges, pais, filhos ou herdeiros diretos dos filhos;
- A maioria dos votos pode ser direta ou indireta;
- Pelo menos um representante da família ou parente consanguíneo estiver envolvido na gestão ou administração da empresa;
- As sociedades cotadas incluem-se na definição de empresa familiar se a pessoa que estabeleceu ou adquiriu a empresa (capital social) ou as famílias destes, ou seus descendentes, possuem 25% dos direitos de voto, correspondentes ao capital social.
Uma representação mais sintética é apresentada em Portugal pela Associação das Empresas Familiares: “São empresas familiares aquelas em que uma família detém o controlo, em termos de nomear a gestão e alguns dos seus membros participam e trabalham na empresa.” Sendo que o conceito mais comum e “familiar” acaba por ser o de uma empresa fundada por nós, pelos nossos pais ou avós, que representa uma importante fonte de receitas e garantia patrimonial e com a qual nós, os membros da família, possuímos um enorme vínculo emocional e pretendemos assegurar a sua continuidade no seio da nossa família.
Na década de 80, Tagiuri & Davis propuseram um modelo de caracterização da empresa familiar suportado em três círculos representativos da empresa, da propriedade e da família. Considerando um modelo clássico pelos estudiosos desta realidade, na versão mais elaborada contempla não só o posicionamento de cada um dos círculos, como também as especificidades inerentes a todas as suas intersecções. A possível coexistência de sete subsistemas, em que cada um deles poderá expressar distintas expectativas e exigências, além das possíveis alianças que podem resultar de todas as suas combinações, implicam um contínuo envolvimento dos líderes da empresa familiar na busca de um equilíbrio estável, entre todos estes potenciais intervenientes, para assegurar a continuidade da empresa. Nesta contextualização, é possível identificar-se algumas das expectativas das pessoas que se encontram em cada uma destas sete possíveis situações e que se podem agrupar em três distintos blocos:
- Individualistas ou egoístas
- Empresa: obter rentabilidade e assegurar a continuidade futura.
- Patrimônio: manter a posse e controlo e usufruir de rendimentos contínuos.
- Família: fortalecer a coesão com crescimento natural.
- Dualistas ou bipolares
- Acionista a trabalhar na empresa: assegurar o rendimento do trabalho e dividendos.
- Acionista da família: obter dividendos e liquidez patrimonial e solidificar a união familiar.
- Familiar a trabalhar na empresa: garantir o rendimento do trabalho e a família coesa.
- Global ou democrática
- Familiar a trabalhar na empresa de que é detentor de capital: garantir o rendimento do trabalho e patrimonial, assegurar a continuidade da empresa e a união familiar.
Gerir todas estas expectativas, entre muitas outras que no concreto emergem, de múltiplas pessoas, muitas delas familiares, com distintas posições que variam ao longo do tempo, não é uma tarefa simples e certamente que é muito mais ampla e fraturante do que a realidade de uma empresa não familiar, que não possui este forte e poderoso stakeholder que é a família.
A evolução da empresa familiar ao longo do tempo
Com o decorrer do tempo, uma empresa familiar passa por quatro fases muito características:
- Nascimento: Tal como um bebê de qualquer mamífero, a empresa normalmente nasce da vontade de uma pessoa ou casal e com uma dimensão reduzida. Nesta fase verifica-se uma grande, se não mesmo total, sobreposição dos três círculos: o fundador, além de trabalhador, também aglutina a propriedade e licença da empresa.
- Crescimento da empresa: Com o desenvolver da atividade há um natural crescimento da empresa que implica contratar pessoas, fora do contexto familiar, para satisfazer as suas necessidades de mão de obra.
- Crescimento da família: Se ainda não existia um núcleo familiar, não tardará muito a constituir-se e, muito mais rapidamente, a reproduzir-se. O destaque e ritmo de crescimento do círculo da família refletem a chegada do cônjuge e nascimento dos filhos.
- Implosão: A evolução da atividade empresarial, o alcance da maioridade dos filhos e a natural dispersão de parte do capital, pela família ou por outros acionistas, pode levar a uma autêntica implosão da empresa familiar que, para assegurar o seu controlo e sobrevivência, terá de assumir uma enorme preocupação na gestão das expectativas dos constituintes de cada um dos grupos de interesse previamente apresentados.
Os grandes desafios da empresa familiar
Inerentes a uma evolução associam-se oportunidades que coexistem com desafios. No caso das empresas familiares, identificam-se quatro grandes e típicos (porque são comuns à maioria delas) problemas:
Confundir propriedade com gestão: No surgimento e primeira geração de uma empresa familiar é natural que exista uma grande ou total sobreposição entre a figura do detentor de capital e a gestão da empresa: o fundador e capitalista é a “gestão” da empresa, ou, bem mais realista, “é a empresa”. Provavelmente este é o principal segredo do sucesso da empresa familiar: um rosto, um decisor, uma visão e agilidade que torna essa entidade distinta de todas as outras. Esta fase “ditatorial” muito dificilmente terá reflexo na segunda geração, a não ser em casos excepcionais de um único sucessor que consegue implementar uma filosofia muito idêntica à do seu ascendente.
Nesta envolvente, existente a tendência de se associar a detenção de patrimônio ou, mais especificamente, a condição de descendência do fundador e naturais herdeiros, aos futuros líderes da empresa. Como as capacidades de gestão ou liderança não se herdam, optar somente por esta característica para entregar a condução do negócio poderá ser um erro que coloca a viabilidade futura da empresa em causa. Por outro lado, ser descendente direto do líder da empresa, ou membro da família por afinidade (cônjuge), também não é sinônimo de incompetência e fator exclusivo de candidato a cargos de responsabilidade diretiva. O que sobressai, e impera como muito relevante, é como se prepara a sucessão empresarial envolvendo os quatro grandes intervenientes: sucedido, sucessor, empresa e familiares que vão, ou não, assumir funções de direção na empresa.
Confundir os laços de afeto com laços contratuais: Um dos principais focos geradores de instabilidade, e muitas vezes a gota que faz o copo transbordar, está ligado ao dilema da separação dos laços familiares: assentes em carinho, proteção e amor, dos vínculos empresariais, caracterizados por um conjunto de normas comuns estabelecidas entre entidades e os seus colaboradores.
A natural tendência protetora familiar leva por vezes à criação de exceções para os empregados oriundos da família detentora da empresa, normalmente de requisitos menos exigentes, a nível de habilitações para exercer determinadas funções ou cumprimentos de normas: ou mais compensadores que o normal, a nível remuneratório e benefícios extras ou progressões extraordinárias. Estas diferenciações acabam por gerar justificáveis reações, passivas ou muito ativas, por parte dos outros funcionários, com reflexos no desempenho empresarial, nas pessoas em causa e nos restantes membros familiares. No caso especial destes últimos, ao detetarem tais comportamentos tendem a assumir que seus genes são portadores e garantia do “direito” a tratamento igualitário (“em casa sempre foi assim”).
Retardar a sucessão: A liderança de uma empresa é a principal responsável pela sua continuidade futura, logo, um dos maiores desafios que qualquer gestor enfrenta é o de preparar o seu sucessor e saber passar o testemunho no momento adequado. A tendência para adiar o abandono das funções mais executivas não só permite ou limita a evolução e responsabilização dos sucessores, como muitas vezes é um fato de repulsa dos mais competentes, que acabam por abandonar a empresa. Gerir este processo de continuidade torna-se num dos desafios mais sensíveis de uma empresa familiar.
Sentir imunidade a estes problemas: Estes três desafios são de tal forma de conhecimento dos envolvidos que, quase sempre, assumem ter total consciência dos mesmos e soluções que os tornam de tal forma imunes que eles “só acontecem aos outros”. A realidade infelizmente é distinta. O índice de sobrevivência das empresas familiares aquando da passagem geracional é negativamente muito expressivo: 30% passam à segunda geração, 10% a 15% à terceira geração e só cerca de 4% conseguem ver a quarta geração.
O protocolo familiar
Conhecendo-se estas particularidades que são comuns à maioria das empresas familiares, independentemente da sua localização geográfica, o que fazer para evitar ou ultrapassar estes desafios fraturantes? Não se conhece nenhum antídoto 100% eficaz, mas reconhece-se uma ferramenta que pode ajudar a prevenir e, nos casos em que não seja assertiva, assumir-se como um meio de combater e ultrapassar estes e outros potenciais desafios: o protocolo familiar ou qualquer uma de suas variantes de que é exemplo o protocolo de governo empresarial familiar.
Muitas vezes visto como um documento, constituição ou bíblia da empresa familiar e família empresária ele é, antes de tudo, um processo: um tempo estruturado, de sensibilização, diálogo e consenso, durante o qual os diferentes membros a família definem qual deve ser o futuro da família empresária (proprietários atuais ou futuros), posto por escrito, é onde se fixa o que deve ser o guia de conduta da empresa e da família em relação à empresa e em relação à própria família.
Quando e como desenvolver
A altura ideal para iniciar o processo varia muito de empresa para empresa e família para família, mas deveria ser desenvolvido antes da ocorrência de situações que ele possa ou deva tratar (de que são exemplo a entrada de um familiar para a empresa, a entrada ou saída de um sócio ou a necessidade de um novo líder originada por uma qualquer ocorrência inesperada).
A forma de desenvolvimento pode ser exclusivamente interna ou com apoio externo. A primeira opção normalmente parte de um pressuposto errado – considera o protocolo como um documento com um conjunto de normas, logo, algo que facilmente se define e acorda (“eu e meus filhos sabemos o que queremos pelo que um dia destes em uma ou duas reuniões estabelecemos todas as regras que necessitamos.”). Além de ser uma visão muito redutora do mesmo, apresenta duas grandes desvantagens:
- Como é fácil, não prioritário e será despoletado e conduzido pelo “pai” ou líder da empresa, o seu desenvolvimento tarda sempre a chegar (“já há muitos anos que andava a pensar fazer reuniões, mas as condicionantes…”).
- Ao ser liderado por alguém da família, normalmente os pais ou avós, o processo fica desde logo muito reduzido “à definição de umas regras de gestão das pessoas da família a trabalhar na empresa e da sua forma de remuneração, e de quando e como vão ter acesso ao capital da empresa e seus dividendos. Ora eu (pai ou avô, atual presidente, acionista totalitário) considero que…”. Neste contexto, quem irá acrescentar mais itens analisar, apresentar pontos de vistas distintos ou manifestar desacordo?
Uma segunda via é recorrer a apoio externo de pessoas ou entidades que possuam conhecimentos, experiência e uma metodologia adequada ao desenvolvimento do processo. Esta via apresenta como principais vantagens:
- Garantir que o protocolo estará mais focado no processo, onde todos participarão de forma igualitária e sem qualquer limitação ou inibição, do que no documento final, que mais não é do que o resultado escrito do consenso obtido ao longo do mesmo.
- Apresentar e focar a multitude de pontos que devem ser abordados e salientar vantagens e desvantagens das distintas posições que se possam acordar.
- Assegurar que o processo se desencadeará, pois será uma entidade externa a impor um ritmo de trabalho que “obrigará” à alocação do tempo adequado por parte dos participantes.
Que tipo de protocolo desenvolver?
Normalmente um protocolo familiar considera aspectos relacionados com a empresa, com a propriedade, com a família e com as especificidades da intersecção de cada uma destas entidades (as sete apresentadas no esquema adaptado a partir de Tagiuri & Davis e Gersick, Kellin “Os círculos familiares”) e com a participação de todos, ou uma parte equilibrada, dos seus elementos representativos. Contudo, atendendo-se a aspetos como o número de ramos familiares, gerações e potenciais pessoas envolvidas (podem ser várias dezenas), a existência de conflitos empresariais, desavenças familiares, etc., pode ser aconselhável desenvolver-se outras variantes como:
Protocolo de governo da família empresária: Focam-se os aspectos relacionados com a gestão da família empresária: os órgãos de governo, assembleia e conselho de família, representatividade junto das empresas participadas e dos meios envolventes, apoio familiar, heranças, doações, testamentos, regimes de casamento, investimentos conjuntos (Family office), etc.
Protocolo de governo empresarial familiar: Focam-se todos os aspectos exceto os associados à gestão da família atrás referidos.
Como se desenvolve e quanto tempo demora
Dependendo do tipo de protocolo e da metodologia utilizada pela entidade externa, o processo de desenvolvimento do protocolo considera três ou quatro blocos sucessivos, por vezes cíclicos, a saber:
- Sensibilização: Uma sessão para sensibilizar os participantes no sentido de todos terem um adequado conhecimento do processo, dos seus principais objetivos e dos contributos que se esperam da sua participação. Em todos os pontos de contato da entidade externa com os participantes no processo deve existir um papel contínuo de formação baseado na identificação de conceitos ou situações e suas vantagens, desvantagens ou possíveis impactos da sua adoção ou omissão.
- Diagnóstico: Esta fase tem por objetivo que a entidade externa conheça cada um dos participantes e quais as suas posições básicas relativamente aos pontos fundamentais do protocolo. Suporta-se essencialmente em reuniões individuais e confidenciais: o importante é conhecer as posições, independentemente de quem as assume. Um dos pontos cruciais do processo é que todos assumam as suas convicções e que estas sejam tidas em conta sem nunca identificar a sua origem. Esta fase termina com uma reunião conjunta em que se apresentam os pontos essenciais onde existe consenso e os aspectos onde existem divergências ou para os quais não existe uma posição definida.
- Consensos: É provavelmente a fase mais sensível de todas, aquela onde se pretende chegar a um acordo consensual, ou seja, não imposto, sobre todos os pontos considerados relevantes. Implica reuniões individuais e de gruo para se trabalhar em soluções conciliadoras até se encontrarem definições consensuais (razão pela qual esta fase é normalmente aquela que poderá demorar mais a concluir).
- Formalização: Nesta fase a preocupação é passar a escrito e verter num documento único e claro os acordos estabelecidos e promover um ato formal de assinatura do Protocolo por parte de todos os participantes, ação que terminará o processo.
Entre o início e término pode decorrer de seis meses a um ou dois anos, sendo que, nalguns casos, pode ser mesmo mais tempo. José Manuel Espírito Santo, em “Negócios de Família” (EXAME nº 312) refere que no caso da família Espírito Santo o processo demorou três anos e foi conduzido por “pessoas com muita experiência. Já analisaram todos os problemas que possam surgir”. O fundamental não é concluir rapidamente – trata-se de um processo que não é desenvolvido e concretizado todos os dias, pelo que se deve dar tempo para os participantes poderem refletir de forma adequada sobre os distintos pontos abordados.
Como o protocolo está para a empresa familiar ou a família empresária como a “constituição” está para um país, ou seja, não é um colete de forças imutável para todo o sempre, também nunca está definitivamente terminado ou encerrado, devendo mesmo considerar os meios pelos quais pode ser revisto, quer seja através de uma análise periódica (normalmente cinco a dez anos) quer em alterações pontuais que sejam consideradas relevantes.
Conhecer e tomar consciência da sua importância, saber como desenvolver e implementar um protocolo familiar são ações que qualquer família empresária deve assumir como essenciais à sua sustentabilidade e continuidade futuras.
(Revista Exame – Portugal – 01/12/2012 – publicação física)
António Nogueira da Costa
É coautor dos livros ou ebooks “Eu não vendi, não o façam vocês. Empresa Familiar e sucessão”, “Estratégias Empresariais”, “50 perguntas essenciais sobre Empresas Familiares”, “Manual das Boas Práticas da Empresa Familiar” e centenas de artigos, sendo cronista habitual do jornal Vida Económica e outras publicações sobre a temática das empresas familiares, área de que é formador e orador convidado em múltiplos cursos, seminários e congressos.
Formação: Curso Consultor de Empresa Familiar (Universitat Abat Oliva Barcelona); PAD Programa de Alta Dirección, Executive-MBA e Curso Superior de Direção de Recursos Humanos (Escuela de Negocios Caixanova/IESIDE); licenciatura em Matemáticas Aplicadas (Informática). Docente em diversas entidades do ensino superior nas áreas de gestão e marketing, membro do Núcleo de Investigação do IPMaia. Líder ou membro de diversos estudos sobre empresas familiares desenvolvidos em conjunto com associações empresariais e universidades. Foi Diretor dos Programas e docente de Gestão Estratégica da Escuela Negocios Afundación (IESIDE) em Portugal.
Para maiores informações sobre o António: https://www.efconsulting.pt/